São Paulo — A cada três meses o presidente do banco Votorantim, João Teixeira, e três dos 15 diretores da companhia dedicam uma manhã a um encontro que não trata de dados financeiros ou outros indicadores numéricos.
Ao longo de 4 horas eles ouvem 17 representantes de todas as áreas a respeito de termos até pouco tempo atrás estranhos ao vocabulário interno, como “modelos mentais” dos funcionários que ajudam ou atrapalham a execução da nova estratégia do banco.
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As informações para a reunião surgem do acompanhamento mensal que esses executivos fazem há mais de um ano com mais de 300 funcionários de diferentes níveis hierárquicos. O pano de fundo é a discussão sobre a cultura do banco. Eis um dos conceitos mais difíceis de definir na gestão — mas ao mesmo tempo fundamental para o sucesso das companhias.
Cultura é a manifestação prática dos valores da empresa. Empresas com cultura forte são normalmente vistas como superiores — por conseguir executar a estratégia de modo eficiente. O problema é quando os valores dizem uma coisa; e a prática, outra. O banco Votorantim está justamente no processo de tentar conectar as duas pontas — ou seja, de corrigir sua cultura.
No fim da década passada, uma sucessão de erros de gestão culminaram em dívidas e prejuízos recordes. Como resultado, um chacoalhão alterou a um só tempo o controle acionário, boa parte da cúpula e, por fim, a estratégia da companhia.
Teixeira assumiu o banco no auge da crise, em 2011, logo depois que o Banco do Brasil tornou-se sócio da família Ermírio de Moraes e passou a deter 50% das ações da companhia. Nos três primeiros anos, viveu o que chama de “modo de sobrevivência”, um período intenso de corte de custos. Desde o final de 2014, o esforço passou a ser a definição de uma nova estratégia para voltar a crescer com lucro.
Muitas delas, porém, entram em conflito com hábitos cultivados por décadas. Um exemplo: a equipe de produtos para o varejo poderia passar a oferecer empréstimos aos funcionários dos clientes corporativos da área de atacado. Mas, num modus operandi sedimentado ao longo de décadas, as pessoas de áreas distintas simplesmente não se comunicavam.
Parte do trabalho com os 17 “embaixadores” da nova cultura é monitorar se tabus como esse estão dando lugar a um novo jeito de trabalhar. “Nos últimos dois anos trabalhamos para evitar que aspectos tradicionais da cultura do banco joguem contra a estratégia”, afirma Teixeira.
Uma pesquisa realizada pela especialista em comportamento organizacional Betania Tanure, e obtida com exclusividade por EXAME, mostra que a preocupação dos diretores do Banco Votorantim coincide com a de muitos outros executivos de empresas brasileiras atualmente. Numa amostra de 2 000 executivos de 500 companhias de grande porte, 69% dos entrevistados afirmam precisar de uma mudança estratégica.
O problema: boa parte deles não acredita que a cultura corporativa atual seja capaz de tirá-la do papel. Trata-se de um dilema tão antigo quanto a existência das grandes corporações. Quando o assunto é a gestão de pessoas, falar é a parte fácil. Difícil é fazer com que as pessoas de fato façam o que precisa ser feito, sobretudo quando para isso é preciso alterar hábitos arraigados.
Uma das frases mais célebres do lendário guru de gestão Peter Drucker é: “Culture eats strategy for breakfast”. Numa tradução livre: “A cultura pode sabotar qualquer estratégia”. Em tese, a equação deveria ser simples. A diretoria desenha uma nova estratégia, depois escreve uma missão e um punhado de valores condizentes.
Os valores são incorporados à rotina dos funcionários e, assim, ajudam a formar uma nova cultura. Diversos estudos em todo o mundo, porém, revelam que esse processo está longe de ser assim tão harmonioso. Um dos levantamentos mais extensos nesse sentido foi realizado por especialistas da escola de negócios Fuqua, da Universidade Duke.
Entre 5 000 executivos de grandes companhias americanas e europeias, mais de 90% dizem que a cultura é importante para os resultados. Mas apenas 15% afirmam que a cultura organizacional vigente é a ideal. Para os autores, o assunto só desperta atenção quando algo dá muito errado.
Um exemplo: quando a montadora alemã Volkswagen reconheceu que fraudava sistematicamente dados sobre o consumo de combustível de seus automóveis. “Normalmente, só depois que os resultados ruins aparecem existe a consciência da inadequação da cultura. E a cultura, na prática, não muda rapidamente”, diz Betania.
Diga-se a favor da maioria que, se existe um consenso sobre o tema, é o de que forjar uma cultura eficiente está longe de ser uma tarefa simples. A primeira dificuldade: ela está lá e é condição vital para que a máquina continue a funcionar. Mas ninguém pode vê-la ou tocá-la. Está entranhada no comportamento de todos os funcionários e no jeito como as decisões são tomadas.
Uma pesquisa global feita pela consultoria Deloitte com cerca de 7 000 executivos neste ano revela que menos de um terço deles afirma entender de fato o conceito de cultura. Lou Gerstner, o lendário executivo que reergueu a gigante de tecnologia IBM nos anos 90, costuma dizer que é mais fácil reconhecer do que definir uma empresa com cultura forte. Nessas companhias, os sinais dela estão por toda parte.
Em vez de desfilar as habituais platitudes sobre filosofia de trabalho, a varejista online Amazon tem um documento com 14 mandamentos para sua equipe. Segundo uma recente reportagem do jornal The New York Times, uma piada interna diz que os “amazonianos” seguem tão fielmente os chamados princípios de liderança que costumam repassá-los até para seus filhos.
Os símbolos da cultura que prega a inovação e o questionamento contínuo estão nos detalhes: um dos prédios da companhia leva o nome de “Day One”, como uma lembrança de que todos os dias devem ser como o primeiro de existência da companhia.
As reuniões não começam com apresentações de PowerPoint — e sim com cerca de meia hora de leitura silenciosa de seis páginas de texto preparadas por quem vai conduzir o encontro. “Quando você tem de expressar suas ideias em frases e parágrafos completos, é preciso ter mais clareza sobre suas ideias”, disse o fundador Jeff Bezos.
“A cultura de uma empresa é criada devagar, ao longo do tempo, pelas pessoas e pelos eventos. Para o bem ou para o mal, é algo estável, duradouro e difícil de mudar”, escreveu Bezos em sua carta aos acionistas deste ano. Por vezes, a determinação na hora de cristalizar crenças e hábitos parece beirar o fanatismo religioso.
É o caso da varejista de calçados americana Zappos, comprada pela Amazon em 2009, mas que manteve a gestão independente. Todos os funcionários passam as três primeiras semanas de trabalho no call center, atendendo clientes. Após esse período, a empresa oferece 3 000 dólares para que o recém-contratado deixe a companhia caso não tenha se identificado com o estilo de trabalho.
Todos os anos, os funcionários escrevem conjuntamente um livro, aberto ao público na internet, sobre o que acham a respeito da cultura da companhia. Reed Hastings, fundador da americana Netflix, considera sua cultura tão importante que montou uma apresentação de 124 páginas para detalhá-la. O documento já foi visto quase 15 milhões de vezes desde 2009.
O pesquisador americano James Heskett, professor emérito na escola de negócios da Universidade Harvard, foi um dos primeiros a estabelecer uma correlação direta entre cultura e resultados financeiros. Nos últimos 30 anos, Heskett analisou dados de mais de 200 empresas dentro e fora dos Estados Unidos.
De acordo com ele, uma cultura eficiente influencia positivamente aspectos não financeiros do negócio — como retenção de funcionários, relacionamento com o cliente e lealdade dos consumidores a produtos e serviços.
A conclusão foi que quase metade da diferença de lucro operacional entre algumas das empresas e suas concorrentes diretas se deve à cultura. “Diversos aspectos entram na conta, como a retenção e a produtividade dos funcionários”, disse Heskett a EXAME (veja entrevista na pág. 78).
Vida ou morte
Se criar uma cultura eficiente não é fácil, mudá-la é ainda mais complicado. A natureza humana joga contra. Mesmo em questões de vida ou morte, mudar, em geral, significa um esforço hercúleo. Estatísticas americanas mostram que apenas 20% dos pacientes com problemas cardíacos adotam novos hábitos necessários para aumentar sua expectativa de vida.
Quem se aventura num processo de mudança de cultura deve saber que esse é um caminho longo. Segundo: falar é importante, mas não basta. Atitudes tendem a ser mais eloquentes. É o que mostra a emblemática tentativa do banco Itaú de tirar o peso de sua hierarquia na última década. O banco fechou as portas do “gravatinha”, restaurante exclusivo para supervisores e gerentes, desativado em 2008.
Agora os funcionários de médio escalão fazem as refeições com seus subordinados. Na mesma época, Roberto Setubal, presidente do banco, enviou um e-mail a todos os funcionários no qual pedia para ser chamado simplesmente de Roberto — no lugar do pomposo “doutor” Roberto.
Desde 2010 ele lidera o chamado “encontro de líderes”, que reúne 6 000 executivos religiosamente uma vez por ano para discutir o “jeito Itaú de ser”. É algo novo dentro do que já foi um ambiente bem mais sisudo e formal. Os executivos da geradora e distribuidora de energia EDP no Brasil constataram na prática que esse processo exige persistência.
O primeiro esforço da subsidiária para unificar a cultura de suas operações, formada após uma série de aquisições, ocorreu em 2005, quando a companhia passou a ter ações negociadas em bolsa. Tudo aconteceu em poucas semanas. Primeiro, os diretores se reuniram e pensaram num conjunto de valores.
A lista foi publicada na intranet e impressa nos crachás. “Com o tempo, era algo que estava ali, mas ninguém lembrava que existia”, diz Miguel Setas, presidente da companhia no Brasil. Para sair do discurso e ter efeitos práticos, a nova tentativa de formação de cultura, iniciada em setembro de 2014, foi diferente.
Em vez de simplesmente comunicar os mais de 6 000 funcionários sobre a missão e os valores estabelecidos para a companhia, a diretoria decidiu consultá-los. Numa pesquisa, todos — desde eletricistas até funcionários dos escritórios — tiveram a chance de apontar os problemas mais frequentes no ambiente de trabalho. “Em geral se gasta uma semana para definir uma missão”, afirma Setas.
“Levamos oito meses para ouvir todo mundo.” Em outras proporções, algo semelhante aconteceu na empresa de fidelidade Dotz. Durante três meses, uma série de entrevistas com boa parte dos cerca de 300 funcionários ajudou a identificar que não havia uma visão única entre eles sobre o propósito da empresa. “O levantamento deixou claro onde estavam os pontos críticos”, diz Roberto Chade, presidente da Dotz.
Sem “aliados” do processo para manter a discussão constantemente ativa entre os funcionários, é muito provável que o assunto logo caia no esquecimento. No caso da EDP, foram recrutados voluntários de diversos níveis hierárquicos para conduzir encontros periódicos para discussão dos valores e de maneiras de colocá-los em prática. De início, os diretores esperavam que houvesse pelo menos 100 interessados.
Hoje há 200 deles, treinados especialmente para a função. Nem todos os encontros foram um sucesso. Mas as coisas melhoraram quando Miguel Setas, o presidente, apareceu de surpresa em alguns deles. “É difícil ganhar a adesão espontânea de toda a equipe, por isso o exemplo do líder é fundamental”, afirma Luis Gouveia, diretor de cultura organizacional da EDP.
A própria escolha desses embaixadores da cultura leva em conta a lógica de que o exemplo é tudo. Entre os voluntários, apenas os que eram considerados exemplares foram aceitos.
Na fabricante de material de construção Duratex, que iniciou um processo semelhante em meados de 2015, o critério de seleção dos multiplicadores foi o mesmo — foram escolhidos 16 funcionários para coordenar encontros mensais a partir de outubro. A tarefa deles é ir fundo nas razões que podem dificultar a mudança.
“Na hora de mudar, muitos dizem: ‘O que eu ganho com isso? Já estou fazendo minha parte’”, afirma Marcelo Linardi, gerente de relacionamento com o cliente do Banco Votorantim e um dos 17 eleitos “embaixadores da cultura”. Novos parâmetros de avaliação de desempenho e de distribuição de bônus costumam ser incentivos convincentes.
Na EDP, só havia metas financeiras para balizar esses dois processos. Hoje, mais de 3 000 funcionários são avaliados segundo indicadores como satisfação de clientes e desenvolvimento de fornecedores, identificados como pontos críticos da cultura da empresa. Quando o trabalho pode ser dado por encerrado? Em geral, o esforço extra para fortalecer uma nova cultura dura de dois a três anos.
Manter “embaixadores”, por exemplo, é saudável por um tempo. “Depois as pessoas passam a pensar de uma mesma maneira automaticamente”, diz a especialista Betania Tanure. Por definição, o fortalecimento da cultura é um processo que nunca acaba. Depende apenas — e isso não é pouco — da coerência entre o que se fala e o que se faz.
FONTE: Exame